segunda-feira, 25 de julho de 2011

Floresta sem mar




Quando acordava sentia um peso profundo, era como se aquele fosse ultimo dia da sua vida. Só que isso era pura ficção, ao acordar tinha sempre um árduo caminho pela frente. Ao cair da noite pensava que afinal tinha resistido e estava vivo. A monotonia era a chave do seu dia-a-dia. Costumava tomar o pequeno almoço bastante cedo, não conversava com ninguém e partia à sua labuta. Contemplava a natureza que o envolvia, árvores e mais árvores. Às vezes apetecia-lhe poder ver o mar. Pensamentos impossíveis de concretizar, pois o mar estava a tantos quilómetros de distância. Naquele dia de inverno, resolveu ir à floresta para reflectir um pouco. Quando lá chegou um alívio o envolveu. Sentia-se como uma pena, quase juraria ser capaz de voar. Abria os braços entregava-se ao mundo, só que nunca chegou a levantar voo. - Porque não sou um pássaro? Que liberdade deve sentir ao sobrevoar o mundo! De repente começou a correr floresta fora,enquanto o vento soprava fortemente. Era ameaçador o ruído da ventania com o silencio da floresta. Estava cansado de tanto correr, só que aquilo que sentia era inexplicável. Uma sensação de pureza na alma. Voltou para casa, fechou-se no quarto e começou a escrever:
" Ao grito profundo do mar Soa distante a saudade Sou fruto desta floresta Repugno esta cidade..."
Deu-lhe uma fúria profunda e riscou tudo o que escrevera. Exclamou na sua solidão: - Nunca foste poeta, nunca foste nada, entregas-te a esta floresta e não és tu! - Estás a ficar louco, louco, louco. Afasta-te da monotonia, sai, vai-te embora daqui! - Quem és tu voz incógnita? Talvez a voz da tua consciência. -Voz da consciência! Ou estou louco ou isto é uma brincadeira. -Sou a voz da consciência. Vai-te embora daqui! Larga tudo parte rumo ao desconhecido. A minha consciência não tem voz. Estou a pensar alto de mais. Ligou o radio, ouviu-se a voz do locutor: " dentro de momentos e a seguir ao sinal horário, teremos as notícias mais relevantes do país e do estrangeiro. Fique connosco ..." Desligou-o imediatamente. Não tinha coragem para ouvir as desgraças dos outros, já lhe bastava a sua. Com tanta família, não falava com ninguém; não estavam zangados, antes pelo contrário, só que sempre foi de poucas palavras. Falava o indispensável, era este o seu feitio desde criança. Adorava todos eles, mas demonstrava este afecto de uma forma um pouco estranha. Todos compreendiam a sua maneira de ser, introvertida mas amiga. Apesar da amizade e dos laços familiares que os uniam, não dava satisfações a ninguém. Pensou: " - Devia ir mesmo embora, não digo para sempre, talvez por alguns dias. Só assim poderei respirar outros ares. Estava entre a espada e a parede, por um lado sabia que ao partir aliviava o seu pensamento, por outro sentiria a falta do seu lugar, da sua floresta. Só que o mar por vezes falava mais alto que ele. Nadar, entregar-se àquelas ondas ferozes, sentir no corpo o seu rebentar. Só de pensar nisso, parecia vestir uma nova alma cheia de alegria e vontade de viver. Que mistério, habituado ao interior, à sua floresta, pensava constantemente no mar. Um dia fez as malas, pegou no carro e partiu rumo ao Sul. A viagem demorou algumas horas, a vontade de chegar era tão forte que nem deu pelo tempo passar. De repente ao longe podia ver-se o azul do céu confundir-se com o azul do mar. Sinónimo de profundeza. Parou só quando o enfrentou e contemplou-o mesmo ali à sua frente. Correu desvairadamente, com a roupa que tinha no corpo, mergulhou naquele mar agitado, num final de uma tarde de inverno. Nadou, nadou, sentiu o frio gelar-lhe o corpo, só que continuou naquela loucura. Parecia uma criança! Começou a tremer de frio, as mãos, os lábios estavam roxos, teve mesmo de sair das águas gélidas. Despiu a roupa, deitou-se na areia húmida e sentiu aquela sensação única de liberdade e alegria. Como que um alivio injustificável. Por ele passaria o resto do tempo ali, a olhar o mar infinito e ao mesmo tempo sentir aquele odor a maresia. Um homem de floresta, que adorava o mar. Muitas das vezes os amigos na brincadeira diziam-lhe: " Parece que numa outra encarnação foste sereia". Ele sorria, mas pensava que talvez os amigos tivessem razão. Sabia que não podia ficar ali eternamente. Além do mais iria ter saudades das suas árvores, que contemplava todas as manhãs. Pensava vezes sem fim: - Porque é que o mar não está junto da minha floresta? Seria a melhor situação que lhe podia acontecer. Só que isso seria impossível e o impossível para ele era frustrante. Um homem ligado à natureza e à poesia dela. Antigamente passava horas a declamar belos poemas. Fazia o seu próprio palco, imaginava um publico caloroso e dava asas ao seu ser. - Um dia vou ser poeta! Só que os anos avançaram e nunca se concretizou o seu sonho. Ou melhor era poeta e leitor de si próprio. Quem lhe daria a mão, para o lançar no mundo da literatura? Ninguém. Não queria pedir favores. Se fosse conhecido, seria somente ajudado pelo seu talento natural. Naquela praia deserta e gelada, começou a cantar alto, o que lhe vinha à cabeça: Sou feliz Tenho o mar em mim Sou loucura Sou desejo Da floresta sem fim Pássaros que voais Velozes como o vento Mostrai-me a paisagem O eco do talento Se um dia voar Num labirinto azul Mergulharei no teu céu Remarei até ao Sul Quero ser mar Quero ser floresta Quero ser poeta É tudo o que me resta... Parou de cantar. Quem ouvisse e visse aquele cenário, diria que era mais um louco na terra. Não tem mal nenhum ser louco, há quem faça da loucura profissão. Ele só ele. Um homem que devora a leitura, que devora a natureza. Um ser raro nos dias de hoje. Um homem que irradia sabedoria. Vive num anonimato, porque ninguém lhe esticou a mão. Levantou-se a soluçar. Olhou o céu e disse: - Adeus, vou-me embora. Sou um fracasso repleto de solidão. Arrancou com o seu carro, num pranto inesperado e para sempre ficou sepultado na floresta sem mar.
11 Setembro 1996

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